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24 DE JUNHO DE 2022
Artigo – A fiança, a boa-fé e a outorga conjugal

Fiança se constitui em obrigação secundária do fiador pela satisfação do crédito do credor de obrigação principal, o que ocorre (se e) quando da verificação de inadimplemento do devedor (afiançado).[1]

A doutrina majoritária qualifica-a como espécie de contrato benévolo, isto é, instrumento por meio do qual o fiador verdadeiramente pretende ajudar o devedor, o que o faz garantindo ao credor o pagamento da dívida, e por isso somente admite interpretação restritiva, nunca declarativa ou extensiva, como se pode verificar da simples leitura dos arts. 114 e 819 do CC/02.[2]

Portanto, exatamente por essas peculiares características, de ser benéfico e de interpretação restrita, é que o art. 1.647 do CC/02 registra que, ressalvado o disposto no art. 1.648[3] (possibilidade de suprimento de outorga conjugal pela via judicial), nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime de separação absoluta[4]: (…) III – prestar fiança ou aval.

Chega-se, pois, ao ponto central deste artigo: em regra, só é válido o instrumento de fiança se houver outorga conjugal – uxória se for da esposa ao marido; marital, se for do marido à esposa.

Ocorre que, o que em teoria parece ser óbvio, dispensando-se, em um primeiro olhar, maiores reflexões, na prática, muito ao contrário, esse instituto e a consequente necessidade de outorga conjugal para validade tem implicado em intrincadas questões, as quais não raras vezes tem desafiado o poder Judiciário. O óbvio, pois, precisa ser desvelado e dito por meio da análise da vida como ela é.[5]

Nesse sentido, veja-se a seguinte narrativa autoral, que consta do portal de notícias do TJ do DF e dos territórios (TJDFT), referente a julgamento ocorrido em maio de 2022, especificamente sobre o tema aqui tratado: o autor contou que sua esposa estava sendo executada pela empresa ré, por ter sido fiadora de contrato aluguel de terceira pessoa. Todavia, o contrato não mencionava o estado civil de sua esposa, que era casada com comunhão parcial de bens, desde 1982. Diante do ocorrido, requereu que a fiança fosse declarada nula, pois foi assumida sem o seu consentimento, fato essencial para sua validade.[6]

Ora, pelo que se anotou acima, forçoso seria concluir que razão assiste ao autor, nos exatos termos do art. 1.649 do CC/02, que prescreve que “a falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal”.

De mais a mais, o STJ já exarou, por meio de enunciado sumular, entendimento sobre a matéria, i. e.: a falta de autorização de um dos cônjuges implica ineficácia total da garantia, salvo nos casos em que o fiador emitir declaração falsa, ocultado seu estado civil de casado.[7]

Ocorre que, como se pode perceber, o instituto da fiança, até por etimologia, anda imbrincado com a categoria jurídica vetor de todo e qualquer contrato submetido ao regime do CC/02, qual seja: a boa-fé objetiva, nomeadamente em função interpretativa, nos ditames do art. 113 do CC/02:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III – corresponder à boa-fé; IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.

Como se passa a demonstrar, tudo o que faltou no caso dos autos foi boa-fé objetiva, e, por via de consequência, o pleito autoral, o qual, a priori, deveria ser anulado facilmente, foi julgada improcedente na totalidade pelo juízo de 1º grau.

Isso porque consta do processo que: a empresa defendeu que a fiança seria válida, pois a esposa do autor teria omitido o fato de ser casada, informação que também não constaria em sua declaração de imposto de renda. O juiz substituto da 9ª vara cível de Brasília explicou que nos documentos fornecidos pela esposa do autor não constava que ela era casada, fato que impediu a ré de requerer a autorização de seu marido. Assim, entendeu que a fiança seria válida, haja vista que “incide na espécie a exceção aviada pelo STJ, no sentido de que tendo a fiadora ocultado seu estado civil deve permanecer hígida a fiança prestada”.[8]

Insatisfeito, o autor recorreu sob o argumento principal de que a declaração de imposto de renda apresentada pela ré seria falsa e foi objeto de registro policial. Também alegou que sua esposa forneceu certidão de propriedade de imóvel, documento no qual consta claramente as informações sobre seu casamento. Os desembargadores contataram que no rol de documentos apresentados pela esposa do autor havia uma certidão de ônus reais sobre imóveis com a informação sobre seu casamento.

Com esse raciocínio, a 5ª turma cível do TJDFT declarou, à unanimidade, nula a fiança, o que se fez sob as seguintes conclusões: “Como se vê, mais do que comprovado que ré, locadora do imóvel, teve ciência do estado civil da fiadora e não adotou as necessárias cautelas (outorga uxória) à formalização da fiança prestada, do que decorre a necessária conclusão de ineficácia da fiança, não havendo que se falar em má-fé ou torpeza a afastar as regras dispostas no CC/02 (arts. 1.647 e seguintes)”.

Vitória da boa-fé objetiva, a qual bravamente prevaleceu e colocou luz sobre a análise do contrato de fiança outrora sub judice, a bem da verdade (dos autos).

_____

[1] Assim: MIRAGEM, Bruno. Direito Civil: Direito das obrigações. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 658.

[2] Código Civil. Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.

[3] Código Civil. Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la.

[4] O regime da separação total de bens é aquele em que se promove absoluta separação patrimonial e os bens do casal não se comunicam.

[5] “Amigos, num dia inspirado, escrevi uma frase que ia sofrer todas as variações possíveis. Eis a frase: – Só os profetas enxergam o óbvio. ‘A princípio, era uma frase engenhosa. Mas não imaginei, jamais, que corresse todo o território nacional. Vocês entendem? No dia seguinte, eu saí de casa, bem cedo, tão cedo que esbarrei, quase tropecei no leiteiro. Vejam o sucesso fulminante de uma frase bem-nascida. Assim que me viu, o homem erguei o braço e declamou: – ‘Só os profetas enxergam o óbvio’. Recuei dois passos e avancei outro tanto. Perguntei: ‘Onde é que você leu isso? ‘ Ele puxou o recorte do bolso. – ‘Li na sua crônica, na sua coluna, ora, pois, pois. ‘” In: RODRIGUES, Nelson. Só os profetas enxergam o óbvio: frases inesquecíveis de Nelson Rodrigues. 1ª ed.: Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2020, pp. 6-7.

[6] Turma anula fiança prestada sem autorização do marido. Disponível em: < https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2022/junho/turma-anula-fianca-prestada-sem-autorizacao-do-marido> . Acesso em 15 jun. 2022.

[7] Súmula 332 do STJ:  . Acesso em 15 jun. 2022.

[8] Turma anula fiança prestada sem autorização do marido. Disponível em: < https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2022/junho/turma-anula-fianca-prestada-sem-autorizacao-do-marido> . Acesso em 15 jun. 2022.

Fonte: Migalhas

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